Texto: CARLOS PRIMATI
Os filmes de terror, embora tenham surgido na Europa ainda nos primórdios do cinema, com as experiências lúdicas de Georges Méliès, e depois de maneira mais artística no cinema mudo alemão e nórdico, consolidaram-se como gênero nos Estados Unidos, mais particularmente no início do cinema sonoro, na década de 1930. A indústria de entretenimento estadunidense – a mais diversificada, massificante e lucrativa do mundo – deu espaço a tudo e a todos, em maior ou menor grau, com mais ou menos dignidade e respeito; porém, algumas dessas histórias caíram no ostracismo e na obscuridade, por representarem valores ultrapassados ou pelo próprio caráter perecível do material orgânico com que eram feitos os filmes.
A trajetória de pessoas negras – profissionais, técnicos, atores e personagens – no cinema norte-americano é repleta de obstáculos e superações, de preconceito e reconhecimento, de altos e baixos que podem representar tanto uma aversão velada e a insistência em estereótipos quanto um desperdício de talento ou uma fama efêmera. Nos filmes de terror, a situação não é diferente: espelhando a própria sociedade estadunidense, com sua conturbada e violenta história de segregação, racismo institucionalizado e a consequente revolta em busca de direitos civis igualitários entre brancos e pretos, o cinema de gênero também acompanhou muito proximamente as transformações e vitórias dos americanos afrodescendentes.
No entanto, é uma história com lacunas que talvez jamais sejam preenchidas: a perda definitiva de um número considerável de produções raciais de horror – particularmente das primeiras décadas do cinema, desde os curtas-metragens mudos cômicos com fantasmas da Ebony Film e da Lubin Films, aos longas estrelados por Pigmeat ‘Alamo’ Markham, Eddie Green e vários outros astros praticamente esquecidos – deixa capítulos que ainda não foram devidamente contados e contextualizados.
O início da reflexão do horror negro no cinema americano pode ser atribuído ao pioneiro diretor Oscar Micheaux, um talento singular que somente agora está começando a ser reconhecido (o documentário “O Super-Herói do Cinema Negro”, que conta sua trajetória, acabou de ser lançado), e que em 1920 realizou os longas “Dentro das Nossas Portas” e “O Símbolo do Inconquistado”, em resposta ao racismo presente em “O Nascimento de uma Nação” (1915), de D.W. Griffith. Micheaux realizou alguns filmes nos quais abordou mais diretamente o gênero do horror, do mistério e do suspense, porém muitas dessas obras se perderam com o tempo.
De maneira mais despretensiosa, quase ingênua, no começo da década de 1930, o casal de evangelistas negros James e Eloyce Gist se utilizou da linguagem do cinema para pregar sua religião, realizando obras como “Trem para o Inferno”, no qual o próprio Diabo surge recolhendo as almas de pessoas pecaminosas e perdidas. Redescoberto, restaurado e remontado poucos anos atrás, “Trem para o Inferno” hoje impacta muito mais por seu encanto artesanal, com uma narrativa intuitiva e quase documental, do que por sua mensagem moralista. O casal realizou alguns outros filmetes com estética e doutrina semelhante, igualmente exóticos e assombrosos.
O horror de um cinema feito na raça
A população negra estadunidense, que nas primeiras décadas do século XX ficava em grande parte segregada às periferias de grandes cidades, passou a ter sua própria parcela de entretenimento com filmes realizados especificamente para esse público. Eram quase sempre estrelados pelo que era anunciado como “all-colored cast”, ou “elenco totalmente negro”. A distribuidora Sack Amusement Enterprises foi grande responsável por levar esse tipo de filme às pessoas negras, incluindo produções de terror como “Drums o’ Voodoo” (1934), “The Devil’s Daughter” (1939), “Lucky Ghost” (1942) e “Fight That Ghost” (1946). Nesse período de um horror ainda incipiente, é de particular interesse a contribuição do ator, roteirista e cineasta Spencer Williams, que escreveu o roteiro de “Son of Ingagi” (1940), um pioneiro e cultuado filme de monstro estrelado por um elenco todo negro, e em seguida dirigiu “The Blood of Jesus” (1941), um melodrama religioso com elementos sobrenaturais. Os dois filmes também foram distribuídos pela Sack.
Nos filmes de horror mais convencionais, personagens negros geralmente ficavam restritos ao posto de coadjuvantes, quase sempre como alívio cômico, no estereótipo do crioulo medroso (como nas comédias com Mantan Moreland e Willie Best); ou como selvagens e ignorantes – criados, nativos, zumbis (Darby Jones, o imponente zumbi de “A Morta-Viva”, de 1943, é um caso emblemático desse clichê). Somente nos anos finais da década de 1960, coincidindo com a ascensão social da população negra e a conquista dos direitos civis, o cinema americano – e por extensão, os filmes de horror – passaram a colocar personagens negros como protagonistas. O filme independente de baixo orçamento “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968), com direção de George A. Romero e estrelado por Duane Jones, tornou-se um clássico revolucionário não somente para o subgênero dos zumbis, mas principalmente por colocar um homem negro no centro das atenções.
A beleza negra do Blaxploitation
A cultura da raça negra chegou às telas de cinema na década de 1970 com o breve (porém marcante) ciclo que ficou conhecido como ‘blaxploitation’, com filmes que exploravam todos os aspectos característicos da negritude – muitas vezes caricatos e exagerados –, como a moda, a música, as gírias, a malandragem, a sensualidade e a beleza. Entre bons e maus exemplos, o ciclo revelou talentos como Calvin Lockhart, Judy Pace, Fred Williamson, Richard Roundtree, William Marshall e Pam Grier, além de levar às telas versões ‘black’ de personagens icônicos do horror como Drácula, Frankenstein e Jekyll & Hyde. Foi em meio a esse tornado de negritude cultural que emergiu o controverso Rudy Ray Moore, uma espécie de precursor naif dos rappers, que estrelou uma comédia de horror tão ofensiva quanto hilária: “Petey Wheatstraw, o Genro do Diabo” (1977).
O maior clássico do blaxploitation de horror é indiscutivelmente “Blácula, o Vampiro Negro” (1972), estrelado por William Marshall, e o único filme do início do ciclo de monstros a ser dirigido por um cineasta negro: William Crain, que mais tarde realizou também “Monstro sem Alma” (1976), a versão racial de “O Médico e o Monstro”. O Blácula de Crain fez um enorme sucesso comercial e resultou em uma continuação – “Os Gritos de Blácula” (1973) – e o surgimento de outros monstros canônicos convertidos à negritude, como “Blackenstein: The Black Frankenstein” (1973), zumbis (“A Vingança dos Mortos”, 1974) e lobisomens (“A Fera Deve Morrer”, 1974).
Foi também graças à atenção voltada ao cinema negro que surgiu uma das grandes obras-primas da década, o fascinante e quase hipnótico “Ganja & Hess” (1973), escrito e dirigido por Bill Gunn – que também tem um papel importante no filme – e estrelado pelo belíssimo casal Duane Jones e Marlene Clarke. O filme, que foi destaque do Festival de Cannes na época, utiliza o vampirismo como tema para debater vício, fé, solidão e suicídio. Também deu início a uma galeria de belas vampiresas negras com Marlene Clarke, a autêntica “rainha do grito” do blaxploitation, e a quem posteriormente se juntariam Teresa Graves (“Vampira”, 1974), Grace Jones (“Vamp… A Noite dos Vampiros”, 1986), Jennifer Beals (“Um Estranho Vampiro”, 1988), Angela Bassett (“Um Vampiro no Brooklyn”, 1995) e Aaliah (“A Rainha dos Condenados”, 2002), entre outras.
A religiosidade afro também é tema de alguns filmes de horror da época, tanto de maneira exótica, quase apelativa, como em “Abby” (1974), que se aproveita do sucesso do então recém-lançado “O Exorcista”, quanto em obras mais dramáticas e complexas, como “Lord Shango” (1975), dirigido por Ray Marsh. Filmes como “A Reencarnação de J.D. Walker” (1976) e “Hospital do Terror” (1978) contam histórias de pessoas possuídas por espíritos vingativos, dentro de um clima místico e misterioso, ampliando o escopo dos temas abordados por esse tipo de cinema setentista.
Os anos 1970 também viram emergir o movimento L.A. Rebellion, que reivindicava uma identidade própria para o cinema negro, voltada às suas raízes africanas, e de onde saíram pelo menos dois importantes cineastas que deixaram suas contribuições ao horror: Jamaa Fanaka, que fez o contundente, raivoso e polêmico “Bem-Vindo de Volta, Irmão Charles”, e S. Torriano Berry, de “The Embalmer” (1996), que mais tarde seria o responsável pela restauração de “Trem para o Inferno”, do casal Gist.
O período também ajudou a pavimentar de maneira sólida o caminho para o surgimento de superastros do cinema, como Eddie Murphy, Denzel Washington, Angela Bassett, Samuel L. Jackson, Laurence Fishburne, Jada Pinkett e Wesley Snipes, e a novos ícones do horror, como Tony Todd, que encarnou o sobrenatural Candyman nas telas e foi protagonista da refilmagem de “A Noite dos Mortos-Vivos”.
Entre ícones e monstros
A década de 1990 trouxe mais diversidade nos filmes de horror negro, indo de produções independentes altamente inventivas, como “Def by Temptation” (1990), dirigido por James Bond III, ao horror urbano e adaptações de personagens das histórias em quadrinhos. Neste último caso, mesclando os universos do horror e dos super-heróis com poderes sobrenaturais, tivemos o decepcionante e um tanto constrangedor “Spawn” (1997), baseado no personagem criado por Todd McFarlane e estrelado por Michael Jai White, e a trilogia “Blade” (1998-2002-2004), com o carismático astro de ação Wesley Snipes assumindo o papel do destemido caçador de vampiros criado pela Marvel (o que o torna o primeiro super-herói negro a chegar às telas de cinema muitos anos antes do Pantera Negra).
Porém, muito provavelmente a grande contribuição da década ao horror negro foi o longa-metragem “O Mistério de Candyman” (1992), estrelado por Tony Todd, o único ícone negro do cinema de horror – juntando-se a uma galeria que conta com astros da envergadura de Vincent Price, Christopher Lee, Peter Cushing e Robert Englund. O filme é baseado num conto de Clive Barker, o autor de “Hellraiser”, e fez sucesso suficiente para se desdobrar numa trilogia, de qualidade decrescente, concluída por “Candyman 2: A Vingança” (1995) e “Candyman: Dia dos Mortos” (1999), sempre com Todd no papel do assassino sobrenatural com um ganho no lugar de uma das mãos.
A cultura do hip-hop e a violência sempre crescente dos grandes centros urbanos motivou uma série de produções com histórias de horror ambientadas nesses cenários. Desse movimento surgiu a antologia de histórias de terror “Contos Macabros” (1995), com direção de Rusty Cundieff e produção de Spike Lee (“Faça a Coisa Certa” etc.). Outros dois volumes de “Contos Macabros” vieram em 2018 e 2020, juntamente de “American Nightmares” (2018), todos com direção da dupla Rusty Cundieff e Darin Scott. Também merecem destaque os filmes estrelados pelo rapper Snoop Dogg, como “Urban Menace”, “Hood of Horror” (2006) e principalmente “Bones, o Anjo das Trevas” (2001), dirigido por Ernest Dickerson e coestrelado por Pam Grier.
Os anos finais da década de 2010 e início de 2020 mostraram uma força renovada do cinema negro de horror, tendo como principal representante Jordan Peele, que causou sensação com Corra! (2017), filme que quebrou barreiras ao vencer o Oscar de melhor roteiro original, seguido pelo longa-metragem Nós (2019) e pela nova versão da série de TV “Além da Imaginação”, apresentada pelo cineasta. O terceiro longa de terror de Peele, intitulado “Não! Não Olhe!”, está programado para estrear em julho no Brasil, prometendo acrescentar uma nova camada nesse sofisticado universo de insólito, mistério e pesadelo do autor.
As produções voltadas ao gênero realizada por, com e sobre pessoas negras passaram a proliferar depois do inesperado êxito comercial de Peele. Alguns cineastas importantes já flertavam com o gênero antes – Spike Lee fez “A Doce Sede de Sangue” em 2015, sua reimaginação de “Ganja & Hess” – mas outros tantos só tiveram oportunidades de filmar depois que o modelo se mostrou promissor. A produtora Blumhouse passou a investir em histórias de horror com protagonismo negro em obras como “Thriller” (2018), “Ma” (2019), “O Mistério da Ilha” (2019), “Black Box” (2020) e “Negra Como a Noite” (2021). Diversas outras realizações – inclusive séries de TV, como “Z Nation”, “Arquivo 81”, “Lovecraft Country” e “Eles” – investiram em modelos semelhantes.
O documentário “Horror Noire” (2019), dirigido por Xavier Burgin e baseado no livro de mesmo nome da Dra. Robin R. Means Coleman, ajudou a trazer o assunto ao centro das atenções, derivando uma série de eventos voltados ao tema: estudos, mostras, cursos, debates, palestras. “Horror Noire” acabou inspirando ainda uma antologia de mesmo título com seis histórias de terror, dirigidas por diferentes cineastas, produzida pelo canal Shudder e lançada em 2021.
Mas aquele que talvez seja o melhor filme de horror lançado ao longo do incomum ano pandêmico de 2021 é também sobre vidas negras – e dirigido por uma mulher: “A Lenda de Candyman”, de Nia DaCosta, com produção de Jordan Peele, que também assina o roteiro junto da diretora e de Win Rosenfeld. O filme se conecta intimamente com a dura realidade do preconceito e do racismo que insiste em perdurar na sociedade, a movimentos como Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”), deflagrados em resposta à brutalidade policial nos Estados Unidos, à interminável luta por direitos iguais e, acima de tudo, por respeito humano.
No cinema, essas vidas também importam – encantam, fascinam, emocionam e dão voz e representatividade a pessoas negras. Inclusive nos filmes de horror.
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